segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Falsa xilogravura - Esconde esconde




ESCONDE ESCONDE


Contaram que uma vez se reuniram todos os sentimentos e as qualidades dos homens em um lugar da Terra. Quando o aborrecimento havia reclamado pela terceira vez, a Loucura, como sempre tão louca, propôs-lhe: - Vamos brincar de esconde-esconde?
A Intriga levantou a sobrancelha, intrigada, e a Curiosidade, sem poder conter-se, perguntou: Esconde-esconde? O que é isso? É um jogo, explicou a Loucura, em que eu fecho os olhos e começo a contar de um a um milhão enquanto vocês se escondem e, quando eu tiver terminado de contar, o primeiro de vocês que eu encontrar ocupará meu lugar para continuar o jogo.
O Entusiasmo dançou seguido pela Euforia. A Alegria deu saltos que acabou por convencer a Dúvida e até mesmo a apatia, que nunca se interessava por nada. Mas nem todos quiseram participar: a Verdade preferiu não se esconder. Para que, se no final todos a encontrariam? A Soberba opinou que era um jogo muito tonto ( no fundo o que a incomodava era que a idéia não “tinha sido” dela) e a Covardia preferiu não se arriscar.
Um, dois, três, quatro,... Começou a contar a Loucura.
A primeira a esconder-se foi a Pressa que, como sempre, caiu atrás da primeira pedra do caminho. A Fé subiu ao céu, e a Inveja se escondeu atrás da sombra do Triunfo que, com seu próprio esforço, tinha conseguido subir na copa da árvore mais alta. A Generosidade quase não conseguiu esconder-se, pois cada local que encontrava parecia-lhe maravilhoso para algum de seus amigos: se era cristalino, ideal para a Beleza; se era a copa de uma árvore, perfeito para a Timidez; se era o vôo e uma borboleta, o melhor era para a Volúpia,... Se era uma rajada de vento, magnífico para a Liberdade. E assim acabou escondendo-se em um raio de sol.
O Egoísmo, ao contrário, encontrou um local muito bom desde o início: ventilado, cômodo, mas apenas para ele. A Mentira escondeu-se no fundo do oceano ( mentira! Na realidade, escondeu-se atrás do arco-íris).
A Paixão e o Desejo esconderam-se no centro dos Vulcões. O Esquecimento, não me recordo onde se escondeu, mas isso não é o mais importante.
Quando a Loucura estava lá pelo 999.999, o Amor ainda não havia encontrado um local para esconder-se, pois todos já estavam ocupados, até que encontrou um roseiral e, carinhosamente, decidiu esconder-se entre suas flores.
Um Milhão!... contou a Loucura e começou a busca.
A primeira a aparecer foi a Pressa, apenas a três passos de uma pedra. Depois se escutou a Fé discutindo com Deus, no céu, sobre zoologia. Vibraram a Paixão e o Desejo nos Vulcões.
Num descuido, encontrou a Inveja e, claro, pôde deduzir onde estava o Triunfo.
O Egoísmo não precisou ser procurado. Ele saiu sozinho disparado de seu esconderijo que, na verdade, era um ninho de vespas.
De tanto caminhar, a Loucura sentiu sede e, ao aproximar-se do lago, descobriu a Beleza.
A Dúvida foi mais fácil ainda, pois a encontrou sentada sobre uma cerca sem decidir de que lado se esconder. E assim foi encontrando todos... O Talento entre a erva fresca, a angústia em uma cova escura, a Mentira atrás do arco-íris ( mentira! Ela estava no fundo do oceano) e até o Esquecimento, que já havia esquecido que estava brincando de esconde-esconde.
Apenas o Amor não aparecia em lugar algum.
A Loucura o procurou atrás de cada árvore, embaixo de cada rocha do planeta e em cima das montanhas.
Quando estava a ponto de dar-se por vencida, encontrou um roseiral. Pegou uma forquilha e começou a mover os ramos, quando, no mesmo instante, escutou-se um doloroso grito.
Os espinhos haviam ferido o Amor nos olhos.
A Loucura não sabia o que fazer para desculpar-se. Chorou, rezou, implorou, pediu perdão e até prometeu ser seu guia.
Desde então, desde que se brincou de esconde-esconde na Terra... O Amor é cego e a Loucura sempre o acompanha.


Do livro: PEDRO, Waldir, Em busca da Transformação – a Filosofia pode mudar sua vida, RJ, WAK, 2006.

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