sábado, 28 de agosto de 2010

AS PORTAS QUE ME TRANCAM






“ A primeira porta é de madeira grossa, obediente nos gonzos, lisa. Abre para uma sala grande, de janelas ogivais quase seteiras encaixadas nos muros. Origem da luz castanha que tudo lambe como um pelo. Encosta-se no batente sem ruído. Não tem tranca.
A segunda porta é vermelha. Dá para uma escada larga, mal iluminada, paredes e degraus cinzentos. Uma escada que desce entre poeiras. Tem um puxador estreito do lado de fora. Do lado de dentro tem que ser empurrada. Seu baque surdo repercute nas escadas.
A terceira porta é verde, de ferro. Dá para a mesma escada, agora mais estreita e mais escura, descendo em caracol. Tem uma tranca por dentro, barra grossa de ferro que se aparafusa na ponta, para uma maior segurança.
A quarta porta é estanque. Barra a escada. A roda no centro indica fechamento de cofre. É de metal polido, marcada de arrebites, chapas sobrepostas em firme espessura. Conseguindo passar, se saberia que abre para enormes salas, talvez cavernas, quebradas e estruturadas no arcabouço de vigas, nas arestas cortantes das abóbadas, entrecortadas por lances de escadas que levam apenas a patamares e ao vácuo, ou então a esplanadas tomadas por outros lances que adiante fogem em rampas. Cordas pendentes dos ganchos, agarradas nas vigas, enriquecem a sala em bordados de aranha. Rápidos vôos entrecortam as arcadas.
Sete aberturas em arco marcam o início de sete corredores. Não têm portas. A entrada é livre. Levam à sete pontas de um labirinto, construído de tal modo, que nunca se sabe qual é o teto e qual é o chão, onde é a parte de cima e a de baixo, qual ele, qual o seu reflexo, se reflexo se pode chamar essa outra realidade. Mais difícil é saber, ao persegui-lo, se é a pessoa que anda em baixo ou a que anda em cima, pois o labirinto duplica tudo que contém, sendo ele próprio duplo.
Não sei como se chega ao fim. Sei que no fim há uma porta. Pequena, bem pequena, por onde se entraria rastejando, a cabeça entre os braços, ao nível do chão ou então de lado, as mãos ajudando o resto do corpo a passar. Eu mesma nunca a atravessei.
As portas obedecem à ordens precisas, ditadas em silêncio.
Fecha-se a primeira ao grito da rua, à campainha que toca, ao muito prazer com que cumprimentamos o novo conhecimento. É a porta de alerta, alarme das outras, que se abrem, porém com a mesma facilidade com que se fecham.
A segunda se tranca ao início da discussão, cumprimento da tarefa difícil do cargo. Pode ser aberta por fora, embora pesada. É por onde a descida começa. Adiante se fecha a terceira. A porta estanque está quase sempre fechada. Obedece às vezes, ao comando de abrir. Inútil forçá-la. Acionado, seu mecanismo se torna irreversível, e nada passa. Será preciso então esperar o momento sem perigo, o raro momento de sua suavidade em que a entrada é possível, para avançar nas salas de grandes arcadas e duplicar-se no labirinto.
A porta pequena nunca se abriu. A intuição me diz do veludo e espinho, mucosa de lama, carícia de sangue. A intuição me diz de gritos no silêncio. Mas o medo guarda a porta e mais forte fica quando cresce o desejo de abrir. Eu mataria o medo se possuísse o que está atrás da porta, mas não posso abrir enquanto o medo estiver vivo, e a intuição me diz que atrás da porta é tudo”.


Onde este texto foi fornecido, não foi citado o autor.

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