Qual será o caminho da criatura humana? Carl Gustav Jung nos responde a esta pergunta com o conceito de PROCESSO DE INDIVIDUAÇÃO. Ele chamou assim ao processo natural, espontâneo e autônomo, completamente independente de nossa vontade consciente,(há contradições nesta abordagem. J.J. Clark coloca em seu livro: Em Busca de Jung, pág.202; "...o caminho da auto-realização exige a colaboração ativa do ego consciente, sendo, pois uma questão de opção moral e vontade. A individuação não é algo que aconteça automaticamente à pessoa, mas deve ser buscada e conquistada com esforço, ´como um ato de grande coragem praticado na vida", eu concordo com ele. O processo de Individuação é para o Ego, não pode ser inconsciente se não é irreal, não realiza o si-mesmo, virá um complexo, aí o indivíduo é tomado pelo complexo do Self mas não individua...tb não acontece com todos porque é um arquétipo e precisa ser vivenciado conscientemente através do confronto com a imagem arquetípica ou Imago Dei, com a participação ativa do ego, que é quem realiza o Processo portanto jamais poderá ser espontâneo, sem a colaboração do Ego.) que acontece com todos nós, desde que nos permitamos à transformação natural dos processos de desenvolvimento, crescimento e morte. Nesse caminho, o Ego deve tornar-se flexível o suficiente para libertar-se dos seus paradigmas e ficar aberto ao fluxo criativo do inconsciente, a fim de que este se realize. Dessa forma poderemos contemplar as novas idéias e possibilidades que emergem do lado obscuro de nossa mente.
O Ego, considerado por Jung como o regente da consciência, tem um papel fundamental para definir os níveis de maturidade de um indivíduo. Por meio do diálogo com o inconsciente, intermediado pelas imagens simbólicas, vai-se atravessando camada por camada deste nosso substrato psíquico, encontrando representações cada vez mais sutis, menos pessoais, até chegarmos à essência, à primeira camada - o Self, arquétipo da totalidade, do equilíbrio e da unidade, que corresponde ao nosso centro conectado com todo o cosmo. Seguir o caminho da individuação necessita de um Ego que estabeleça uma boa relação com o Self, e esta poderá ser projetada em uma comunicação satisfatória do homem com o seu deus.
O conteúdo do inconsciente, para ser uma realidade na percepção do Ego, precisa tornar-se imagem. Essa imagem traduz uma experiência humana eterna na espécie e ganha a forma de Símbolo Arquetípico. Este guarda um padrão e, ao mesmo tempo, expressa a sua singularidade por meio da imagem. É como os nossos dedos, ou seja, os humanos nascem com dedos(esse é o padrão), mas estes são sulcados por impressões digitais(essa é a imagem) bem singulares, de modo a não se encontrar dois indivíduos iguais.
Para considerarmos o processo de individuação nos seres humanos do gênero masculino, vamos refletir sobre o par de opostos puer-senex. Puer é a fixação na infância, enquanto senex refere-se à fixação na velhice. Não poderíamos deixar de nos referirmos aqui à relação puer-senex com a temporalidade. Para o Hinduísmo o mundo é uma ilusão, e o tempo um fator que nos engana ao ponto de acreditarmos apenas no ego e nas coisas palpáveis. Por isso, nos iludimos com a irreversibilidade do tempo e, não percebemos a circularidade dele muito bem representada em mitos antigos. Assim, no ego, o tempo se comporta se desdobrando apenas em uma única direção, sem nos darmos conta da reedição de eventos passados, propiciando a separação cronológica clara da condição puer e senex. No entanto, na estrutura psíquica do inconsciente, vivemos o tempo da circularidade, consequentemente, a história será sempre a reedição de algum evento do passado. É o eterno retorno, sem início nem fim. Nesse caso último, as dimensões puer e senex serão vividas perpetuamente retornando sobre si mesmo sem o antes e o depois.
Percebemos que o sujeito, no caminho da individuação, precisa rever os ciclos de sua alma. O homem precisa estabelecer relações com o seu centro - ou com Deus - e então enfrentar o desafio de saber lidar com a sua alma - ou anima - como chamou Jung. Para isso, precisamos aceitar o fechamento dos nossos ciclos de tempo. É preciso morrer para o antigo, e renascer para o novo, em um contínuo processo criativo. Quando aceitamos a mudança, conseguimos abandonar o passado de forma criativa, porque dele emergem novas possibilidades de atuação no futuro. Fechamos portas para que possamos renascer.
O homem tomado por cronos, pelo senex devorador e tirano(pois é...eu acredito que todo arquétipo tem seu lado positivo e negativo, assim, o senex Tb tem o lado sábio...tudo depende da pré-disposição da consciência para atrair um ou outro pólo, esta pode ser uma grande chance do indivíduo transformar este complexo em algo muito positivo) , amedrontado com o tempo, se arma de mecanismos que o faz isolar-se da alma e deixá-la com dificuldades para expressar-se. Deus, em sua insistência, faz com que ele sinta a necessidade desse contato por meio de uma linguagem que o homem moderno tem mais dificuldade em entender. A linguagem dos símbolos que une os opostos passa a ser substituída pelo seu contraponto que é o diábolos, ou seja, o contrário do símbolo, aquilo que desune. Assim, o diabo faz o seu papel de alquimista junto com Deus.
Ao experimentarmos uma relação significativa com o outro, mobilizamos as figuras interiores que habitam adormecidas o mundo misterioso da psique humana. Essas figuras aspiram a existir e agir. Ao acontecer esse fenômeno, assistiremos ao papel dos símbolos em nossa transformaçào. Tornar-se-á símbolo, a imagem que permita a relação do Ego com os conteúdos do inconsciente.
O homem ao amadurecer, encontra dentro de si mesmo o seu aspecto Puer. Porém, se o Ego não consegue manter essa experiência por meio da atitude da consciência introvertida, o mundo lá fora lhe pregará peças e, ai aparecerão as relações assimétricas e, consequentemente, perderá todo o encanto cedendo lugar às crises. Essas crises poderão levar o sujeito a melhorar a qualidade de sua vida, ou sucumbir na loucura, ou mesmo na morte literal. Para exemplificar essas três possibilidades vejamos as histórias a seguir:
No filme "D. Juan De Marco" o personagem vivido por Marlon Brando se apresenta como um psicólogo às vésperas da sua aposentadoria, sendo designado para salvar um jovem suicida que se identifica como D. Juan. No topo de um guindaste, o psicólogo trava um diálogo de identificação com os delírios de D. Juan e este desiste do suicídio. Daí em diante D. Juan passa a ser um objeto de transformação daquele homem que agora ativa o Puer esquecido nas regiões mais abissais do seu mundo desconhecido. Aquele homem, pesado, sem mais os encantos da vida, psicólogo maduro, com a missão de resolver o problema do jovem D. Juan, tornando-se leve, sedutor, vivendo a beleza interior. Essa mobilização no seu mundo interior o faz viver a alegria de um Puer (quem disse que o senex não tem esta alegria, leveza e sedução? Nem todo velho é chato como tantos que conhecemos, o John Burns tem esta coisa do senex leve, sedutor, dançarino e feliz...há veja Tb o livro da Gióa: Caminho Ancestral)que dança com a sua amada, desfazendo o feitiço do tempo que lhe havia retirado todo o encantamento.
O confronto do Puer, que quer olhar para fora, com o Senex, querendo olhar para dentro, gera então o campo de batalha na psique, muitas vezes se equilibrando nas próprias ilusões em que as Dulcinéias e os Tadzios podem surgir por todos os lados, dificultando uma melhor relação com o seu centro. Aqui eu lembro as histórias "D. Quixote de La Mancha" e o romance "Morte em Veneza".
Na conhecida história de Cervantes, D. Quixote, um homem maduro(este sim um Puer, totalmente tresloucado e inconsciente, tomado pelas imagens inconscientes), vive toda a dimensão de sua fantasia projetada no mundo externo, transformando qualquer objeto em espelho de sua alma e, assim, vive o herói lutando e vencendo batalhas que nada mais são que Moinhos de Vento, em busca de sua amada Dulcinéia, imagem de anima com poderes de trazer a graça a partir de qualquer tipo de senhora que esteja ao alcance dos seus sentidos iludidos por essa força. Seu auxiliar, o Sancho Pança, como sua função inferior, o mantém em sua tarefa de iludir-se e viver a unidade do sujeito com o objeto (Participation Mystique).
No famoso romance de Thomas Mann, Morte em Veneza, o maduro Aschenbach não consegue vencer o confronto com o púbere Tadzio que espelha o Puer que habita o mundo interior daquele homem maduro dando-lhe forças descomunais, sendo possível devorar o Senex, ou seja, o confronto Puer e Senex resulta na morte, símbolo do fechamento de um ciclo. Aschenbach ao perceber Tadzio no saguão do hotel, logo em sua chegada, torna-se obcecado pelo moço, mas qualquer ação concreta é, para ele, totalmente inimaginável. A partir daí, tenta o artifício externo de fazer contato com a sua jovialidade, utilizando-se de um barbeiro que pinta os seus cabelos brancos, para no final, numa cena triste: um homem morrendo e perdendo de vista o objeto que ativou toda a fúria dessa organização emocional que traduzia a juventude perdida.
Assim, podemos ver nos três exemplos, como aconteceram as relações puer-senex na psique masculina. Na história de D. Juan o homem com sua alma madura experimenta a força da ativação de sua alma jovem, obtendo a sua transformação. Na história de D. Quixote a razão é perdida para que haja a experiência interior transformando a camponesa em uma poderosa anima para um admirado herói, como muitos homens maduros que perdem sua estrutura de família e se lançam na busca desenfreada de um mundo fantasioso e inexistente para as dimensões práticas da existência. No romance de Thomas Mann, o esforço entre a ética e as necessidades impróprias resultantes do confronto puer-senex, põe fim a uma questão insolúvel, ou seja, não foi possível a harmonia entre esses opostos e a solução foi a dissolução.
Na verdade, sustentar a tensão entre os opostos deus-diabo, puer-senex, cronos-aion, rítmo-repouso, criação-destruição, etc., é uma jornada épica para transcender o caos e a ordem, depois de percebê-los indissociáveis. Ou seja, que um não surge sem o outro, assim como a felicidade não existe sem a infelicidade. Essa é a condição de nos libertarmos da necessidade de saber o que é certo e o que é errado e a aceitar que ambos são verdadeiros. A magia consiste em optar por todos eles.
PROF. CARLOS SÃO PAULO é médico, analista junguiano, professor do IJEP e fundador do IJBA
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