sexta-feira, 15 de março de 2013

CINDERELA CHINESA

As histórias arquetípicas se originam, freqüentemente, nas experiências individuais através da irrupção de algum conteúdo inconsciente, que podem surgir em sonhos ou em alucinações em estado de vigília. Algum evento ou alguma alucinação coletiva acontece, e então, o conteúdo arquetípico irrompe na vida de um indivíduo. Isto é sempre uma experiência numinosa. Nas sociedades primitivas praticamente nenhum segredo é guardado; então essa experiência é sempre comentada, ampliando-se por outros temas folclóricos existentes que a completam.

Em essência, os contos de fada podem ser vistos como pequenas obras de arte, capazes que são de nos envolver em seu enredo, de nos instigar a mente e comover-nos com a sorte de seus personagens. Causam impacto em nosso psiquismo porque tratam das experiências cotidianas, e permitem que nos identifiquemos com as dificuldades ou alegrias de seus heróis, cujos feitos narrados expressam, em suma, a condição humana frente às provações da vida. Não fossem assim tão verdadeiros ao simbolizar nosso caminho pessoal de desenvolvimento, apresentando-nos as situações críticas de escolha que invariavelmente enfrentamos, não despertariam nem sequer o interesse nas crianças que buscam neles, além da diversão, um aprendizado apropriado à sua segurança. Neste processo, cada criança depreende suas próprias lições dos contos de fadas que ouve, sempre consoante seu momento de vida, e extrai das narrativas, ainda que inconscientemente, o que de melhor possa aproveitar para aí ser aplicado. 




A história de Ye Xian, também conhecida como Cinderela chinesa original, foi escrita durante a dinastia Tang (618-906 d.C.)*
Durante muitos anos, pensou-se que a história de Cinderela havia surgido na Itália, em 1634. Iona e Peter Opie, em The classic fairy-tales, publicado pela Oxford University Press em 1974, consideram a versão italiana de Cinderela a mais antiga versão européia.Hoje sabemos que Ye Xian, de Duan Cheng-shi é oitocentos anos mais velha que a história italiana. Cinderela parece ter viajado da China para a Europa. Talvez Marco Polo a tenha levado de Pequim para Veneza oitocentos anos atrás. Quem poderá saber?
Era uma vez uma menina chamada Ye Xian, que viveu durante a dinastia Tang na China. O pai dela tinha duas esposas e duas filhas, uma de cada esposa. A mãe de Ye Xian morreu, e logo depois o pai. A madrasta a maltratava, demonstrando preferência pela própria filha.
Ye Xian era uma ceramista de talento e passava o dia todo no torno, aperfeiçoando seu dom. As pessoas vinham de longe para comprar seus potes. Seu único amigo era um peixe dourado que ela adorava. A madrasta ficou com ciúme, pegou o peixe, comeu e botou as espinhas debaixo de um monte de esterco. Ye Xian encontrou as espinhas e as escondeu em seu quarto. As espinhas do peixe lançavam raios mágicos que atribuíam um brilho especial a seus potes.
Houve uma grande festa, mas a madrasta proibiu Ye Xian de participar. Quando a madrasta e a irmã saíram, Ye Xian se vestiu com um belo manto de penas de martim-pescador e um par de sapatos dourados que eram leves e elegantes.
Na festa, ela conversou brevemente com o nobre senhor guerreiro local, que ficou muito impressionado com sua beleza. A madrasta a reconheceu e a perseguiu. Ye Xian correu para casa, mas perdeu um dos sapatos, que foi encontrado pelo nobre guerreiro. Ele ordenou que todas as moças de seu reino o experimentassem, mas o sapato era muito pequeno. O sapateiro que fizera os sapatos apresentou-se e contou ao nobre senhor guerreiro que pertenciam a Ye Xian, que havia trocado um de seus potes pelos sapatos dourados. Com seu próprio talento e esforço, Ye Xian havia comprado os sapatos que acabaram levando ao seu casamento com o nobre senhor guerreiro. Os dois viveram felizes para sempre.
(texto e comentário extraídos do livro Cinderela chinesa, a história secreta de uma filha renegada, de Adeline Yen Mah, Companhia das Letras, 2006)

* O texto chinês da história de Ye Xian está no livro Yu Yang Za Zu, que contém uma miscelânea de contos folclóricos do século IX chinês. O autor é Duan Cheng-shi e as histórias foram coletadas em um livro enciclopédico que teve muitas edições durante os últimos 1100 anos
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